FREI BETTO: LEI DE
ANISTIA É "ABERRAÇÃO JURÍDICA"
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TERRA
MAGAZINE 19/08/08
DIEGO
SALMEN A Lei de Anistia é uma "aberração
jurídica" e o governo Lula não deve enfrentar até o fim essa ferida.
Essa é a avaliação de Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, ex-assessor especial do presidente Lula e
militante político preso por duas vezes (1964 e de - Como anistiar quem não foi sequer punido, como é o
caso dos que torturaram e assassinaram? Em entrevista a Terra Magazine, Frei Betto fala sobre
a abertura dos arquivos da ditadura e critica o argumento de
"revanchismo" utilizado por setores das Forças Armadas para
criticar a proposta de revisão da Lei de Anistia. A legislação sobre o tema
entrou em vigor em 1979. - Revanche é virar o jogo na tentativa de o
derrotado vencer o vitorioso. Ora, vitoriosos na ditadura fomos nós, as suas
vítimas. Os militares ficaram tão mal na foto que, ainda hoje, temem sair à rua uniformizados. A polêmica em torno dos limites da Lei de Anistia e
da abertura dos arquivos da ditadura foi reaberta por recentes declarações do
ministro da Justiça, Tarso Genro, e do ministro da Secretaria Especial de
Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo Vanucchi. Ambos defendem que a tortura perpetrada durante os anos
de chumbo deixe de ser considerada como crime político. - Não se trata de vingança, e sim de justiça. É a
impunidade que favorece o crime - critica o dominicano. Durante o regime militar, Frei Betto
foi preso por suas ligações com a ALN (Ação Libertadora Nacional) de Carlos Marighella. Sua passagem pelo que chama de "sucursal
do inferno" foi contada no livro Batismo de Sangue (1982),
vencedor do prêmio Jabuti no mesmo ano. A obra também narra a ajuda prestada pelos frades
dominicanos aos militantes de esquerda, além de fazer um relato
impressionante do assassinato de Marighella e das
torturas sofridas pelo colega Frei Tito - que não resistiu ao fardo
psicológico e se suicidou em agosto de 1964. "Parecia insuportável a
Frei Tito seguir sofrendo, no espírito, essa tortura prolongada",
escreveu. Leia a seguir a íntegra da entrevista com Frei Betto: Terra Magazine - O ministro Tarso Genro vem se
mostrando favorável à abertura dos arquivos da ditadura e propõe, inclusive,
a punição a torturadores. O senhor defende a revisão da Lei de Anistia para
punir crimes de tortura? Frei Betto - A lei da anistia é uma aberração jurídica. Como
anistiar quem não foi sequer punido, como é o caso dos que torturaram e
assassinaram? E o fizeram em nome do Estado e em desrespeitos às próprias
leis adotadas e promulgadas pela ditadura. Não se trata de vingança, e sim de
justiça. É a impunidade que favorece o crime. Todos os países sul-americanos
afetados por ditaduras militares apuraram os crimes cometidos e têm punido os
responsáveis. Assim, suas Forças Armadas marcam nitidamente a distinção entre
elas e aqueles membros que praticaram crimes hediondos. Um não pode ser
confundido com o outro. O senhor foi assessor do presidente Lula no primeiro
mandato. Há falta de sincronia no governo no que diz respeito às discussões
sobre a ditadura? O mesmo governo que propõe a revisão da Lei da Anistia não
se dispõe a brigar polticamente por ela. Por quê? Embora tímido no que concerne ao tema, o governo
Lula, presidido por um ex-preso político, tem feito a sua parte: abriu os
arquivos da polícia civil, patrocinou a publicação do livro "Direito à
Verdade e à Memória", empenhou-se em descobrir corpos de desaparecidos,
autorizou o Ministério da Justiça e a Secretaria Especial de Direitos Humanos
a realizarem seminário para debater a questão. Falta abrir os arquivos das Forças
Armadas e obrigá-las a revelar o que ocorreu aos desaparecidos. Objetivamente, na sua avaliação, o que impede o
governo Lula de avançar nessa direção? A mesma falta de vontade política para enfrentar
militares, latifundiários, sonegadores. Assim, o governo Lula infelizmente
contribui para que as nossas Forças Armadas atuais apareçam como cúmplices
daqueles que no passado mancharam a história e a honra da instituição
militar. Pela sua experiência como assessor presidencial, é
possível dizer que existe ainda um temor de retaliação das Forças Armadas? Qualquer tentativa de retaliação seria uma grave
ameaça ao Estado de Direito, à democracia duramente reconquistada pelo povo
brasileiro. Por que países como a Argentina encaram a questão da
abertura de arquivos de frente - ao contrário do Brasil? Porque tiveram a clarividência de separar o joio do
trigo e, assim, resguardar a honra das Forças Armadas e confirmar sua
fidelidade aos princípios constitucionais e democráticos. Um dos argumentos contrários à revisão da Lei de
Anistia diz que houve negociação à época da criação da Lei. Como o senhor vê
esse argumento? Houve de fato uma conciliação nacional em torno do tema? Se aconteceu eu não soube. Negociação entre quem? Entre a
ditadura e suas vítimas? Entre os torturadores e os familiares dos
desaparecidos e assassinados? Pode ter havido uma negociação entre militares
e políticos que, vendo soprarem os ventos da abertura democrática, hoje posam
de democratas com o mesmo vigor que outrora
apoiaram, por omissão ou legitimação, a ditadura e seus crimes. Sobre o argumento do "revanchismo", qual
sua avaliação? Revanche é virar o jogo na tentativa de o derrotado
vencer o vitorioso. Ora, vitoriosos na ditadura fomos nós, as suas vítimas.
Os militares ficaram tão mal na foto que, ainda hoje, temem sair à rua uniformizados. Pagamos um preço alto para que hoje o
Brasil viva em democracia, tenha instituições sólidas, pluralismo político e
considere a tortura como crime hediondo. Apurar crimes não é revanche, é
justiça. Alguns setores militares afirmam que a violência,
nos anos da ditadura, começou a partir de atentados da esquerda, a exemplo da
explosão no Aeroporto de Guararapes (PE). O que acha dessa interpretação? A violência maior foi derrubar um governo
democraticamente eleito e indicar generais para governar o Brasil através de
atos institucionais e um sofisticado e cruel aparelho repressivo. O senhor acha que o governo Lula conseguirá, na
prática, abrir os arquivos da ditadura e rever a Lei de Anistia até o fim do
segundo mandato? Para isso também ele foi eleito. Se ele não o fizer, o próximo presidente terá
capital político para tanto? Espero que Lula não nos decepcione quanto a isso. |